Grandes dias, pequenas existências
sábado, junho 04, 2005
  1.
Zdena levantou a cabeça, surpreendida: «Cartas?
--Sim, as minhas cartas. Devo ter-te escrito umas cem, na altura.
--Sim, as tuas cartas, eu sei», diz, e bruscamente deixa de desviar o olhar; fixa-o de frente, nos olhos. Mirek tem a impressão desagradável que ela lhe vê o fundo da alma, que sabe exactamente o que ele quer e porquê.
«As tuas cartas, sim, as tuas cartas, repete. Reli-as ainda há pouco tempo. Perguntei-me como pudeste ser capaz de uma tal explosão de sentimento.»
E repete muitas vezes estas palavras, explosão de sentimento, não as pronuncia nem depressa nem com uma articulação precipitada, mas lentamente e com uma voz ponderada, como se visasse um alvo que não quer falhar, sem deixar de olhar; para ter a certeza de ter acertado.
(...)
«Para que te podiam servir as cartas?, perguntou ela. Afinal porque é que as queres?»
Não podia dizer-lhe que as queria deitar para o caixote do lixo. Fez portanto uma voz melancólica e começou a contar-lhe que estava na idade em que se olha para trás.
(Sentia-se pouco à vontade ao dizer isto, tinha a impresão de que o seu conto de fadas não era convincente, e tinha vergonha.)
Sim, olha para trás, porque hoje esqueceu o que fora quando era jovem. Sabe que falhou. É por isso que queria saber de onde partira, para perceber em que ponto errara. É por isso que quer voltar à correspondência com Zdena, para nela reencontrar o segredo da sua juventude, dos seus começos e das suas raízes.
Ela abanou a cabeça: «Nunca te darei as cartas.»
Ele mentiu: «Só as queria emprestadas.»
Ela abanou novamente a cabeça.
Ele imaginou que algures, neste apartamento, estavam as suas cartas, que ela podia a todo o momento dar a ler a qualquer pessoa. Achava insuportável que uma parte da sua vida ficasse entre as mãos de Zdena, e apetecia-lhe atirar-lhe à cabeça com o grande cinzeiro de vidro que estava pousado entre eles sobre a mesa baixa e levar as cartas. Em vez disso, recomeçou a explicar que olhava para trás e que queria saber de onde partira.
Ela levantou os olhos e fê-lo calar-se com um olhar: «Nunca te darei as cartas. Nunca.»
 
Comments:
o desinteresse e tao comum no ser humano k a certa altura da sua vida torna s dificil d lidar km o mesmo.pois ja n tem a idade para ir para a borga km os amigos,para fazer uma "plateia" improvisada kontando feitos próprios ou algo do género,é kuase km k houvesse um desinteresse mutuo pois o sujeito dps d s aperceber k e desprezado entra na monotonia e la se deixa ficar.Problemas da sociedade de hj em dia k sekalhar so mudarao kuando algo d grande acontecer ao mundo...É um excerto k nos deixa a pensar,bem jogado xavala***
 
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Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

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