Grandes dias, pequenas existências
quarta-feira, junho 29, 2005
  Sem sorriso
Why should I care about posterity? What has posterity ever done for me?

Groucho Marx
 
terça-feira, junho 28, 2005
  Pastelaria
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
--ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora--ah, lá fora!--rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny, nobilíssima visão
 
domingo, junho 26, 2005
  Verpiss dich, Erziehungsministerium!
Tinha prometido a mim mesma que não mexeria neste computador; não hoje. Mas é impossível. Tem sido o meu acompanhante assíduo no estudo (ou na falta dele). Principalmente hoje. Amanhã tenho um exame. Não que seja importante. Não que a má nota que vou ter nele venha influenciar muito a minha média. Mas não consigo deixar de pensar, em jeito de proporcionalidade inversa, na injustiça disto tudo. Não tivemos alemão o ano inteiro, caramba! Mas amanhã lá estaremos, para sermos examinados acerca de algo que desconhecemos, na hipocrisia da tentativa de "igualdade de circunstâncias" do belo ministério deste e do anterior governo.
Posto isto, a descoberta mais produtiva da minha tarde, enquanto tentava desvendar esta magia complicada que é o alemão nível três aos olhos de quem nunca o teve, foi uma bela frase que exponho no título deste blog, e que significa, na minha inocência de menor revoltada e ignorante alemã: Vai à merda, Ministério da Educação!
Em primeira mão de quem vive estas injustiças, a revolta e incapacidade de compreender como ainda há pessoas que elogiam seja o que for deste país, que não as belas paisagens, as boas gentes ou a gastronomia que, por este andar, se perderão também, eventualmente. J.A.V.
 
sábado, junho 25, 2005
  Blogues
Blogues por Vítor Rainho
"Esta foi uma semana verdadeiramente surpreendente. Não sou muito dado a perder horas na Internet, só o faço por razões profissionais, mas com a nomeação para director interino do Blitz vi-me na necessidade de ir espreitar o que dizem sobre o assunto, até porque fui avisado por um fã dos blogues e afins. É impressionante como as pessoas na Net escrevem verdadeiras pérolas de bom e mau-gosto sob a capa do anonimato. Nunca entendi muito bem a razão de tanta cobardia, pois na vida nunca tive de me esconder para dizer o que quer que fosse. (...)
Os blogues têm essa vantagem. Funcionam como terapia grupal e descobrem-se «verdades absolutas» sobre o que quer que seja. Tirando isso, são, obviamente, espaços onde se encontram discussões interessantes e onde as pessoas que não têm acesso aos «media» tradicionais podem expôr as suas ideias. Existem bons textos, bem elaborados e onde se vislumbram novos caminhos. Onde os cibernautas, em vez de irem para discotecas e bares, passam as noites a colocar os seus pensamentos em dia. Onde se picam uns aos outros.
Curiosamente, constata-se também que as pessoas, regra geral, têm dificuldade em aceitar ideias diferentes das suas. Percebe-se que, quando passam ao insulto gratuito, não têm jogo de cintura. Um mal português, que os blogues talvez ajudem a alterar no futuro. Eu, que encontrei um personagem que não conhecia ao espelho, fiquei fã, embora por fora. Já tenho tempo de antena suficiente nos jornais para dizer aquilo que me vai na alma. Sem me esconder e sem medo. Afinal, as ideias devem ter rosto."

"Na Noite" pág.123, Única, Expresso nº 1704, 25 Junho 2005
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Sr. Vítor Rainho,
Na minha cólera de leitora, não assídua, porque de seu só conheço essa sua coluna semanal tão desinteressante, pretendo aqui dizer-lhe três coisas que são verdadeiras vontades irreprimíveis minhas.
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Primeiramente, gostava de fazê-lo entender que o facto de as pessoas se esconderem atrás de Usernames ou de outro tipo de identificações falsas para exporem em Blogues as suas vontades, opiniões, críticas ou simplesmente basbasquices, não passa por vergonha ou fraqueza nossa.
De facto, para quem não detém colunas em revistas e em jornais há já alguns anos, é igualmente fácil dizer o que nos vai na alma e é, acima de tudo, fácil escrever-se com a alma, escrever-se o que se deseja ao invés do que se nos é "proposto". Não escrevemos com a certeza de que teremos duas mil personalidades distintas a ler atentamente os nossos posts; escrevemos com a certeza de que teremos um Miguel ou um brasileiro à procura de um familiar, ainda que seja apenas esse o nosso singelo leitor. Porque quando escrevemos, escrevemos para quem quer ler, para quem incautamente e provavelmente sem saber bem como nem porquê, sente a necessidade de ligar o computador e de se tornar um cibernauta simplesmente para poder desfrutar da companhia das palavras que vão dando cor ao mundano das suas vidas, conheçam ou não quem bloga.
Blogar é isso mesmo. É escrever-se sobre nós e sobre os outros, sobre o que se vê ou sobre o que se anseia ver sem se ver, sobre "verdades absolutas" ou sobre qualquer coisa minimamente anti-dogmática; discussões com ou sem interesse. E deixe-me ressaltar a pouca relevência que têm os comentários acerca do que se escreve por estas bandas, de jornalistas que visitaram um dia um blogue que denigre as suas imagens e que julgam já conhecer a natureza heterogénea deste mundo de pessoas que, Sim Sr.!, inacreditavelmente, preferem muitas vezes sair à noite com os amigos do que ficar a criticar jornalistas que falam de roupa e de bares da moda, uma vez por semana. Porque, afinal de contas, este não é o emprego de (quase) nenhum de nós; é antes a maneira de dar resposta a vontades irreprimíveis que atingiram um dia as nossas cabeças desprotegidas.
E isso, para que saiba, não tem preço.
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Em segundo lugar, é meu dever informá-lo de que não somos todos uma cambada de ignorantes ou pobres, intelectual e financeiramente. Asseguro-lhe que o facto de termos blogues não se explica pela nossa falta de acesso aos "media tradicionais". Se não note bem que leio o jornal e a revista para os quais trabalha desde os 12 anos.
Se por "acesso aos media tradicionais" quiser referir-se a podermo-nos exprimir neles, então que conste que não pretendemos isso. Eu, pelo menos, não pretendo. Estou muito bem aqui, neste que é o mundo dos blogues, a escrever sobre o que se me oferece para trocar isto por uma coluna como a sua.
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Por último, gostaria de agradecer-lhe a oportunidade que me deu através deste seu artigo, de explicar o porquê de todos os meus nomes nos quais "escondo cobardemente" a minha verdadeira identidade.
Andava desde o dia da criação deste blogue a tentar arranjar algo que justificasse explicações desta natureza. Mas o facto é que o(s) leitor(es) assíduo(s) do Orapazquermorrer me conhecem e conhecem desde sempre a índole nada secreta ou mágica das minhas palavras neste blogue e, especialmente, dos meus "disfarces". E um qualquer ser que por aqui passe sem querer ou a título de curiosidade nunca me (se?) questionou acerca do nome do Blogue ou do nome que uso para assinar os escritos que nele constam.
Mas pela oportunidade que me proporcionou, fica portanto aqui uma tentativa de explicação de todas essas coisas:
O meu namorado era tão
de tal modo extraordinário,
cabia num só livro,
esperava-me na escada,
e já um degrau depois
ia descendo o infinito,
tinha camisolas às riscas,
música entre cantares de amor
pairava no algodão leve,
na relva gulbenkiana,
no desnível mais abaixo,
no banco do lago,
na árvore dos enterros
e para além do bater do sol,
o inchaço, e as estrelas,
fantásticos mas certos, inelutáveis
Terra de sublimação
(tantas paragens por fazer...)
a morenice dos sorrisos enleada...
Aceno-lhe: Gentil, gentil espírito,
sereno quanto forte, que me ensinas
a arte de bem morrer, fonte de vida,
uniste o raro ao raro, e compuseste
de humano desacorde, isento, puro,
teu cântico solista, guitarra e estreiteza.
Esse nome vem, no entanto, de mais longe, de umas páginas primeiras, de um livro chamado Estreiteza. A história de um ser que não consegue adormecer porque existem coisas que o angustiam, entre elas um fotógrafo que quer chorar.
Existem pessoas que me ensinaram a querer viver para um dia querer morrer. Pelas coisas genuinamente inigualáveis que já se passaram, o rapaz (que aqui representa várias pessoas no mundo, tenho a certeza) quer morrer; quer morrer porque "no fim sabia a verdade e era feliz", ainda que a angústia lá se mantivesse. Neste blogue é nesse esforço heróico que tento partilhar um bocadinho dessa verdade. Porque todos são dignos dela.
Até lá... bem, até lá não interessa assim tanto o porquê do nome Branca.
Para si Sr. Vítor Rainho, e para todos os que me lêem, periódica ou excepcionalmente, (e este blogue tem ainda taaaantos anos pela frente) o meu nome é Joana Viana e, tal como o Sr., nunca senti necessidade de me esconder ou de ter medo. Já tenho tempo de antena suficiente em muitos «amendoins» deste mundo, desde o dia 18 de Agosto de 1987, para dizer aquilo que me vai na alma. Sem me esconder e sem medo. Afinal, as ideias devem ter rosto.
Com os meus melhores cumprimentos,
Joana Branca Úrsula Iguáran Buendia Viana.
 
sexta-feira, junho 24, 2005
  O que começa mal acaba bem
Depois da pior manhã da minha vida (ou nem tanto a pior da vida mas a pior de há muitos anos a esta parte), descobri coisas fascinantes que me fazem deitar-me hoje, satisfeita. Feliz. Descobertas felizes:

Porque É bom. (ponto) J.A.V.

 
  É bom...
...entrar numa Fnac, mal-humorada e especialmente céptica e constipada, e dar-me conta de que à minha volta homens comuns, de variadas idades, falam abertamente com os assistentes da secção dos livros sobre telefonemas que fizeram para casa uns dos outros e de livros que acabaram de chegar, dos autores preferidos de ambos, tendo a certeza de que mantêm apenas relações cliente/vendedor (e são afinal relações que são tão bonitas). E
...sorrir ao dirigir-me para a caixa e dar-me conta de que é o mesmo rapaz de sempre que me atende, e que se mostra preocupado com os meus espirros, e conversarmos imenso tempo sobre a mudança abrupta do tempo e sobre o meu recém-adquirido CD dos João Gilberto/Stan Getz.
...descobrir que tenho um novo amigo que tem barba e que trabalha na Fnac. Da próxima vez descubro o nome.
(...conhecer alguém e não se dar importância aos nomes.) J.A.V.
 
quinta-feira, junho 23, 2005
  Vontades irreprimíveis que atingem cabeças desprotegidas, em 30 minutos
Dói-me o coração. Para quem ignora, quando digo que me dói o coração não me refiro a qualquer devaneio da alma ou tristeza relacional. O meu coração dói de facto.
Os médicos chamam-lhe paragens cardíacas. Traduzido em português significará que o meu coração partilha do meu mau feitio. Quando lhe apetece bater devagar leva-me à exaustão inesperada e o meu cérebro fica subitamente incapacitado de funcionar como deve ser; tudo fica branco, deixo de ouvir seja o que for que não o bater sussurrantemente estridente do coração e perco a noção da realidade. Quando lhe apetece bater furiosamente é um "desespero" diferente, com uma maior quantidade de desafio nele; é nessas alturas que não consigo respirar. E é por isso que é mais desesperante. Tudo está normal à minha volta. Vejo e ouço perfeitamente. Acontece sobretudo nas alturas em que estou a rir muito com alguém, no meio de muita gente a conversar ou simplesmente sentada concentrada em alguma coisa ou a dormir a meio da madrugada. E é essa a parte do desespero. São dores silenciosas que não se explicam, que chegam sem aviso prévio e que me deixam completamente desnorteada. E são duras de aguentar. Atingem-me assim, quando o meu coração se revolta, e não há protecção.

Tal como o meu coração, também há vontades que frequentemente me atingem e me fazem mover em determinada direcção, sem saber bem para onde ou porquê. Porque tal como o meu coração, também estas súbitas vontades chegam sem aviso, com mau génio e, acima de tudo, sem darem respostas. Porque estava simplesmente sentada à secretária do Miguel, a tentar arranjar vontade para estudar, e o desejo de aqui escrever sobre coisa nenhuma atingiu a minha cabeça desprotegida, inundou-me sem deixar espaço para mais nada.

E aqui estou, há 30 minutos certinhos, a tentar aliviar este desejo para enfim me dedicar à bela hegemonia inglesa do século XIX.
Como, embora mais calmo, o meu coração continua a fazer-se notar, fico-me por deixar outra frase para reflexão, interesse mínimo ou simplesmente desprezo. Para me certificar de que existo não apenas para estudar ou para sentir dores no coração, mas para dar resposta a estas vontades irreprimíveis que atingem cabeças desprotegidas que nos fazem andar, seja lá para onde for que andamos.

Porque é assim que hoje me sinto; os autocolantes dos vidros dos carros podem ser bastante sábios:
O meu karma cilindrou o meu dogma.
 
quarta-feira, junho 22, 2005
  A necessidade de um (milhão de) Moleskine
"Sempre precisou de um foco de concentração. Sabia que possuía demasiada energia e uma boa quantidade de talento indisciplinado, em bruto. Em quase todas as coisas da vida dela, precisava de um objectivo directo e unificado para andar rapidamente para a frente. De outra maneira, havia a possibilidade de andar para trás, para onde não queria ir. E isto transformava-a numa extremista melodramática. Não se conseguia moderar, era-lhe difícil pôr travões. E quando era forçada a acalmar-se, toda essa intensidade se abatia sobre ela e apetecia-lhe chorar. A sua energia esgotava-se, sentia vómitos, mais vontade de chorar, sentia que estava descontrolada e sem saber o que fazer.

A dada altura a sua vida refizera-se. E desde então havia quebras. Movia-se rapidamente numa torrente de actividade, mas de vez em quando algo de inesperado abatia-a profundamente, deixando-a lenta e insegura. Desgastava-a. E ela não possuia a capacidade para se recompor..
Às vezes parecia uma criança. Estendia os braços ao poder, exigia-o. Mas quando a sua vontade prevalecia, encontrava-se apenas consigo própria, e isso aterrava-a.

Por isso precisou sempre de alguém que lhe assegurasse que o mundo não era um vazio, que não é preciso ter sempre o controlo ou a energia ou a capacidade de fazer tudo, sempre."
[Excerto do discurso "A Vida de Joana Viana, obstinadamente (des)controlada e (des)igual", 2090.]
Não iremos para nenhum lado conhecido, não teremos de dizer coisa nenhuma. (Beck) J.A.V.
 
 
"Haverá mundo suficiente para mim?"
Jane Frances
 
terça-feira, junho 21, 2005
  Just another Black board
Pela perfeição da música e pela perfeição dos diálogos. Pela perfeição do elenco e do tema.
Pelas ideias dos cheiros e dos sabores que nos ficam. Por essas imagens bonitas que nos inundam e mostram o que é de facto sentir.
Para que nos deixemos arrebatar, levitar, cantar em êxtase, dançar com fervor.
Porque gostar muito de alguém é a plenitude por excelência.
Porque não sabemos... um relâmpago pode atingir-nos a qualquer momento.
E nem os milénios, multiplicados por eons, elevados ao infinito nos mostrarão mais que um pequeno vislumbre do que falo.

Porque há coisas cujas imperfeições se tornam perfeitas, por isto ou por aquilo.. porque isto ou porque aquilo...
E por tanto mais, poder sempre relembrar o Joe Black, a brutal beleza de Claire Forlani, a genuinidade da personagem desse grande Sr. Hopkins ou a inocência de um Quince...

Relembrar..
E é apenas mais um quadro negro; onde pintamos a branco as imagens bonitas das nossas (re)lembranças; comendo manteiga de amendoim e desejando um pouco mais algo, alguém. J.A.V.
 
segunda-feira, junho 13, 2005
  A calmaria e... Prolfaças! =D
(mais calma..)

Então... À coisa de meses atrás fiz uma descoberta completa e absurdamente caída do céu. Foi uma pequena palavrinha que prendeu o meu olhar quando o meu Grande (pela sua grandiosidade e importância) e decrépito "Dicionário da Língua Portuguesa-6ª Edição" me caiu das mãos e ficou ali, jazido aos meus pés, aberto na letra P, aos pés da cama.

A palavra é 'Prolfaças'. Não deve muito à beleza, muito menos ao reconhecimento. Mas tornou-se deveras bonita para mim. Porque nesse dia 12 de um mês que não me recordo bem qual era, eu andava concentradíssima numa correria empreendida pela casa fora a dar os últimos retoques na prenda do Francisco, para lhe ser dada no dia seguinte. Íamos festejar alguns meses de namoro. E a expressão que se plantou na cara dele ao ler a palavra aquela pequena palavra foi algo de maior, de muito maior. Ri e perdi-me no riso, na gozação. De sobrolho alçado, expressão interrogadora, tinha na boca semi-aberta a questão "What tha fuck?! " O_o .
Acalmei-me, num esforço heróico para parar de rir e expliquei-lhe o que significava a palavra. Detestou-a desde então.

Há pouco mais de meia hora, repeti-lha pela quarta vez hoje, deste feito ao telefone.
Implorou-me que me calasse. Ri. Parei para escutar o conselho que me dava.
--Põe essa palavra num poema teu e vais ver o que te acontece. Quando fores uma pessoa com a mania que é escritora e com montes de livros publicados, bastará escreveres essa palavra e será a decepção completa. "Bolas, porque é que ela foi pôr uma palavra destas aqui?? E eu que gostava tanto da obra dela, de seguir a carreira dela..." As expressões horrorizadas... Vais desejar ter-me ouvido...

Pois bem, meu loveeer, aqui fica a (segunda) palavra mais nossa dos nossos vastos vocabulários, aqui à mão de semar, como uma pêga ao alcance de qualquer um, para que todos saibam que hoje festejamos 244 dias de namoro; porque logicamente, fazer 244 dias não acontece sempre, não connosco; é algo que tem de ser comemorado; é motivo para uma cidade inteira parar, claro.
Assim também eu, no dia 244, improviso qualquer coisa. Palavras escritas, só palavras... como dizia a Margarita. Para leres no dia 245. Para leres no 252, no 1099 e no 86690 e te lembrares do 244. Belo dia, esse!
Porque tu... Tu enlouqueces-me maravilhas-me atrapalhas-me apaixonas-me cegas-me confundes-me. Tu inspiras-me. Tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu ..... Quero tanto de ti e tão próximo que anseio que fosses o ar, o chão, as paredes, tudo. Que tudo o que tocasse fossem os teus braços. Que tudo o que sentisse fossem os teus lábios. Como quando fecho os olhos e tudo o que não vejo és tu. Como quando não durmo e tudo o que sonho és tu. Contigo não consigo respirar. Sem ti não consigo viver. Quero estar tão dentro de ti que nem a luz do dia exista para mim. Quero abraçar-te tanto que todo o mundo colapse e desapareça num pequeno ponto entre os meus braços. Toca-me com as tuas mãos. Faz-me desaparecer com a tua pele. Sufoca-me na tua língua. Arrasta-me pelo ar com o teu perfume. Mata-me de vez. TU se fosses chuva, do céu só cairiam pérolas ... E até o chão gritaria de prazer.
(Maria Teresa Horta)

Por tudo isto: Prolfaças a nós!!! J.A.V.

Prolfaças, s. m. pl. parabéns.
 
  Garrafeiras e urgências
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

Adeus ó homens bons.
Adeus que hoje partiram e deixam já saudade nos corações de quem vos sonha. De quem sonha um filho, um pai, um irmão como vós. Com Eugeniana doçura e Eugenianas aprendizagens da terra, das palavras, do empenho que é poetizar esta exaltação que cada um consome. Com Cunhal integridade e coragem, velhice merecida de quem lutou pelos que viriam, pelos que hoje o choram, por mim que hoje te choro, velho Álvaro, porque vejo em ti o meu lindíssimo Sérgio que como tu por nós lutou e como tu partirá em breve.
Adeus ó homens bons.
Adeus à garrafeira que ficará sempre como marco de identidade e princípio. A chave da renúncia às depravações, a chave pequenina que te marcou como o homem digno que és.
Adeus ó homens bons.
Adeus Eugénio, adeus às tuas urgências. Escreveste as dignificações do que merece ser dignificado, escreveste palavras gastas reinventadas e reinventaste o (teu) amor nos peitos de quem te leu. Adeus bom Eugénio que te choro também, que escondo o choro como nunca o fiz porque pura demais a tua morte. Ansiada(?) Merecido descanso...!
Adeus ó homens bons!
Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.

Kundera diz que os grandes homens de quem se aprende o nome cedo têm algo de irreal e de imaterial, entram vivos na majestosa galeria dos mortos.
Vós, bons homens, entraram hoje mortos na galeria dos recordados e por isso eternamente presentes.

Adeus. Vão com as aves. J.A.V.
 
domingo, junho 12, 2005
  Engenharia da fome

Alimente-se o mundo!

O que hoje se fez em 70 países equivale aproximadamente a 5 voltas ao mundo inteiro.Se são estas as pequenas coisas que estão ao nosso alcance então se calhar elas não são assim tão pequenas. Porque hoje, graças a todas aquelas pessoas que doaram 10 euros a esta causa, milhões de crianças poderão comer, estudar e quem sabe ir viver para um destes 70 países daqui a uns anos, marchar com as gerações que seguiram às das pessoas que hoje lhes deram essa oportunidade.Porque a fome é absurdamente um flagelo real.Porque hoje choramos os milhões de crianças que trabalham sob escravatura (mas calçamos uns nike feitos por elas).

É peremptório acabar com as descrepâncias que não queremos ver, achando que está tudo bem.

É triste que neste país tão pequenino, plantado à beira-mar, tenha de ser um ex sem-abrigo de 70 anos a subir ao palco para entregar 50 euros que lhe fariam falta, sob os aplausos fracos de uma pequena multidão de 30 pessoas.

Mas é isto a engenharia da fome: um alicerce de lágrimas, um alicerce de esperança, um alicerce de força e um de vontade. Porque quem é afectado por este flagelo nem para enxotar uma mosca da cara tem força, somos nós os engenheiros desta edificação que esperançosamente porá fim às barrigas inchadas de nadas.

Seria bom conseguir acabar a construção de um edifício de diferenças, com bases sólidas que o façam durar por muito tempo. Para breve!
 
quarta-feira, junho 08, 2005
  Portos de Abrigo
Eu e o Miguel temos um relacionamento bonito.
Temos grandes conversas... Grandes não pela grandiosidade do assunto nem pela extensão das conversas em si mas porque tudo o que dizemos um ao outro é sempre expresso de uma maneira honesta e desinteressada. Gosto realmente de irritar o Miguel diariamente. E ele gosta genuinamente de me dizer todos os dias "Esse feitiozinho..." Somos o que se pode chamar de amigos, ainda que este conceito se tenha tornado um pouco ambíguo ao longo dos anos, especialmente para mim.
Sim! Somos amigos. Nem sempre o posso ouvir. Nem ele a mim. Mas não há sentimentos de culpa ou de desdém por parte do outro quando isso acontece. Sabemos aceitar o que acontece entre nós sem nos chatearmos muito com isso. E quando de facto podemos ouvir-nos temos um entendimento maravilhoso, daqueles que ninguém julga possível.

E neste dia de calor, numa das nossas grandes conversas, fizemos uma descoberta.
O porquê de eu gostar realmente de irritar o Miguel e o porquê de ele se queixar diariamente do meu feitiozinho. Previsibilidades.

São facilmente denominadas de tudo e de coisa nenhuma, inclusivé de "nada" nas bocas e mentes daqueles que não aceitam que possam depender delas. Mas o facto é que dependemos. Todos dependemos de previsibilidades, de hábitos e costumes comuns que nos liguem a determinadas pessoas, a determinados lugares, a determinados cheiros. Porque a verdade é que embora todos proclamemos a origininalidade, todos queremos o conforto da previsibilidade moderada.
E ela é um "nada" porque uma fraqueza é sempre um "tudo" não admitido.

As previsibilidades são os portos de abrigo das gentes. Portos de abrigo porque no fundo somos todos demasiado fracos para atingirmos uma independência e uma autonomia completas que nos permitam não depender absolutamente de alguém ou de alguma coisa. As previsibilidades são portanto o "tudo" que não queremos enfrentar, com que nos preocupamos muito. Porque a fraqueza é mesmo essa: anunciarmos ao mundo que somos originais e que gostamos de mudança e que, sobretudo, abominamos previdências, quando a verdade é que se não ouvirmos uns "esse feitiozinho...", sentimo-nos bastante vazios.

O Francisco chama-lhes comunicação fática quando as previsibilidades se baseiam em simples frases do mais previsível que pode esxistir. Mas o vencer a fraqueza passa por isto, por aceitar as comunicações fáticas diariamente como se de coisas novas se tratassem.

Deixar que se torne previsível o gostar-se de previsibilidades. Porque gostamos sempre. Porque é uma descoberta importante esta nossa descoberta.

A cargo do Miguel ficam as imagens que se seguem porque já é previsível a genialidade das suas fotografias. J.A.V.

Com os escuteiros fora e entre estudos obrigatórios que tento não enfrentar e uma ida ao cinema algo controversa, surgiu-me uma dúvida, e que melhor resolução do que a de expô-la aqui? A questão é simples.
Atingiu-me que esta necessidade de previsibilidades pode eventualmente ser uma fraqueza inerente à condição humana, acima de tudo porque precisamos de alguém ou de alguma coisa que nos dê segurança no sentido em que se torna a nossa testemunha efectiva para e com quem vivemos. Se calhar todo aquele problema do sentido da vida se explique também a partir daqui. Porque se o lado bom da fúria é o bom em que nos transformamos depois de conseguirmos libertar-nos da raiva permanente que está sempre à mão em tudo e em todos, então as previsibilidades garentem-nos testemunhas eternas para as quais canalizamos toda a nossa existência. Mas não... Assim, seríamos todos inequivocamente dependentes do previsível, e isso também não corresponde à realidade..(é até um bocado desesperante). Portanto, afinal qual é a necessidade básica a que tentamos dar resposta com toda esta inevitável correspondência com previsibilidades? Fica por aqui...para quem quiser procurar um porto de abrigo e perder (ou ganhar) uns minutos.

(Esta é a minha previsibilidade, voltar quando as coisas já foram discutidas e complicar tudo. HEI! Esta parte não está aberta a discussão!=) J.A.V.
 
terça-feira, junho 07, 2005
  Maslow e a teoria da auto-realização
Então... estamos todos sentados numa sala de aula a encarar um professor que gagueja e que se perde momentaneamente nos discursos numa média de 45 vezes por aula (mas que nem por isso deixa de ser boa pessoa) e por acaso calha ser uma aula apresentada (supostamente) por uma aluna que precisa de levantar a nota.
Fala-se da Teoria da Auto-Realização de Maslow. Segundo este, os indivíduos auto-realizados são-no se apresentarem determinadas características, a saber: Percebem a realidade de modo preciso, aceitam-se a si próprios, aos outros e ao mundo, são espontâneos e despretensiosos, centram-se mais nos problemas do que em si próprios, valorizam a solidão, são autónomos, reagem com respeito aos mistérios da vida, têm experiências fortes, identificam-se com a humanidade, têm relativamente poucos amigos, mas levam-nos a sério, partilham valores democráticos, têm um forte sentido ético, têm sentido de humor sem hostilidade, são criativos, resistem à enculturação.
Agora vejamos: a realidade que se nos apresenta actualmente é de uma incongruência impressionante; impede por isso a precisão. Os indivíduos espontâneos e despretensiosos são-no quando querem ganhar alguma coisa com isso (lá se vai a despretensiosidade!) e os que são de facto espontâneos e despretensiosos muitas vezes agem como se não o fossem--falava eu de incongruências... Aceitarem-se a si próprios, aos outros e ao mundo? Baahh... remeto-vos para a primeira explicação supracitada. Quanto ao centrarem-se mais nos problemas do que em si próprios é bem verdade; hoje em dia os problemas são os indivíduos em si, centram-se de facto mais nos problemas porque é fácil generalizá-los e inventar novas doenças ou alegar insanidade ou abandonar uma criança de 15 anos porque ela é homossexual. Portanto, reagir com respeito aos mistérios da vida e terem um forte sentido ético?Enfim. Relativamente à autonomia, às experiências fortes e ao sentido de humor sem hostilidade são realmente as qualidades que se cultivam hoje em dia, da criatividade então nem vale a pena falar. Ficamos com a resistência à enculturação e a partilha de valores democráticos. Para se observar o primeiro fenómeno basta passear aqui pelas zonas que circundam a minha casa. Resistem à enculturação? Mas com certeza. Dirijamo-nos todos aos centros comerciais para vermos pessoas a arrastarem-se como gorilas, a tropeçarem nos braços, ou para vermos gente que nasceu na Escandinávia a falar crioulo. E os valores democráticos? Os valores que uma democracia incute nos espíritos são definitiva e indubitavelmente os que representam as mentalidades e as atitudes de todas as sociedades e culturas por este mundo fora. Se não vejamos o exemplo perfeito desta partilha de valores, essa grande nação que são os Estados Unidos da América, país da liberdade e da igualdade para todos e entre todos. Mas com certeza. E se nos mantivermos apenas aqui por Portugal basta irmos assistir a uma aula de Introdução ao desenvolvimento económico e social e ouvirmos colegas a dizer que os homossexuais deviam morrer e que a homossexualidade só devia existir na China para deixar de haver tantas crianças. Ou então se quisermos opiniões bem mais fundamentadas, de pessoas bem mais formadas e sábias do que um simples aluno, ouçamos a Sra. Professora quando diz que devemos respeitar todos os valores inerentes aos grupos de qualquer cariz que possam existir, desde os de ideologia democrática aos de ideologia nazi. Mas pois claro, eu não concordo com os campos de concentração mas tenho de aceitar que haja pessoas que concordem. Porque realmente, o que são os campos de concentração, a xenofobia e o genocídio comparado com esta anomalia que é a homossexualidade?? O nosso sábio colega defensor do slogan "Homossexualidade só na China!" entretanto deu-nos também a conhecer uma outra campanha de que é promotor. Aparentemente, ele é preto porque nasceu assim e não tem culpa dos preconceitos que possam existir porque não passam de ignorância de certas pessoas (nada auto-realizadas obviamente!). Agora, os homossexuais?? Os homossexuais têm escolha! Eles gostam de pessoas do mesmo sexo porque um dia se fartaram de mexer em mamas ou em pilas dos sexos opostos. É verdade: esta é a campanha que agora propomos, associando-nos ao nosso amigo Denilson: "Seja gay por um dia!". Mas nunca sendo filho deste nosso genial colega estudante. Segundo ele, um filho seu nunca será gay. Porque ele pretende ser um pai muito liberal e democrático. Os filhos vão poder fazer tudo o que quiserem (a menos que sejam raparigas...) excepto serem homossexuais e acreditarem em Deus. De resto, a vida vai ser deles e vão, na minha opinião de assitência, ser uns autênticos adoradores do pai.Com os mesmos valores democráticos, como é óbvio!Queremos lá pessoas ignorantes que gozam com gente preta!
E no meio de tudo isto, na minha profunda incredulidade inocente e despretensiosa, fitei de olhos esbugalhados o professor como quem acaba de despertar de um pesadelo muito mau, e perguntei: Então mas como podemos nós identificar-nos com uma humanidade que não apresenta nenhum destes valores que aqui são apresentados como características essenciais para a auto-realização de um indivíduo.
E das duas três: Ou eu falo demasiado rápido e construo frases demasiado compridas (é tudo verdade..) ou então ninguém quer admitir a realidade tal como ela é! O professor obrigou-me a repetir 3 vezes a mesma pergunta, sempre reformulada, até dizer que achava que humanidade nesta frase não tinha esse sentido, que apresentava mas mais um sentido de humanidade utópica, uma com todas estas características.

Deitei a cabeça sobre os braços, pousados na mesa. E juro de coração que tentei sonhar com essa humanidade.
A única coisa que consegui foi lembrar-me momentaneamente de uma frase de Gonzalo Ballester, um homem desiludido com o mundo e angustiado com a guerra civil espanhola, que buscava paz nas diferentes pessoas que, em jeito de Pessoa, o habitavam, e que afirmou: Não posso desejar que ganhem os bons, já que ignoro quem são.

Acho que fico mais e mais céptica a cada dia que passa. E tudo o que eu queria era que me deixassem continuar a ser a pessoa ingénua que fui até há uns anos atrás. (que sou?!)
Acho também que a má-disposição não combina com o cepticismo. Ainda que sejam ambos passageiros..espero! Porque a verdade é que nem dormir consegui.

Esta foi portanto a produção e/ou produtividade da minha aula de psicologia de hoje:
autonomia criatividade pensamento propriedade equação problemas princípios inconformismo dogmatismo relativismo crença religião susceptibilidade causa personalidade filosofia natural confusão absolutismo inquestionabilidade pressuposto ideia asserção pessoa lógico cognitivismo contrariedade esquina saudável paradoxo partida colocar teatro palhaço literalmente profundo criticismo ironia sociedade lixo sentido não chão contexto mostrar diálogo caso objecção pessoa ideal discordância expôr coincidência inflexibilidade aceitação ponto de vista perspectiva ordem alteração colocar convicção níveis político ontologia capacidade questionamento defender tipo sistematicamente revolução conflito labirinto ideias democracia plano social vida argumentos extremismo tudo isso aspecto racionalidade comportamento sociedade idolatria tecnologia ciência admissão escapar nem nunca continuar complexidade complicado expressão simplicidade sentido problematização rama superficialidade novidade conhecimento desejo material óbvio aceitável ver humor amor tempo teoria estética pânico inteligência líder piada caricatura brincadeira seriedade música perigo arte limitação conclusão cópia herança conformismo povo pagamento hora manhã inteligência amizade fim hipótese forma humor ridicularizar fraqueza criticismo pessoa teoria estético factor restrição fundamentalismo acção pintura cultura dizer invenção arma matar obra génese processo aspecto nomear quotidiano sinfonia cientificidade modo indivíduo relação chavo exemplo experiência terapia reconstrução fragilidade recuperação

Acho que sou bastante auto-realizada por estes levantamentos de palavras que faço.

A pior forma de solidão é a de dar-se conta de que as pessoas são idiotas.

Gonzalo Torrente Ballester
É triste. J.A.V.
 
domingo, junho 05, 2005
  7.
O que Jan achava cada vez mais interessante nas mulheres durante o amor era o rosto delas. O movimento dos corpos parecia desenvolver uma longa película cinematográfica, projectando sobre o rosto, como sobre o ecrân de um televisor, um filme cativante repleto de perturbação, de expectativa, de explosão, de dor, de gritos, de emoção e de ódio. Mas o rosto de Edwige era um ecrân apagado para o qual Jan olhava fixamente, atormentado por perguntas para as quais não encontrava resposta...
(...)
Pequenos grupos de pessoas nuas aproximavam-se deles; Edwige apresentou-lhes Jan. As pessoas apertavam-lhe a mão, saudavam-no, declinavam os títulos e diziam que estavam encantadas. Depois, abordaram temas diversos; a temperatura da água, a hipocrisia da sociedade que mutila a alma e o corpo, a beleza da ilha.
Sobre este último assunto, Edwige fez questão de sublinhar: «Jan acaba de dizer que é a ilha de Daphnis. Acho que tem razão.»
Toda a gente ficou encantada com aquele achado, e um homem extraordinariamente barrigudo desenvolveu a ideia de que a civilização ocidental ia morrer e a humanidade ficaria finalmente liberta do fardo escarvizante da tradiçao judaico-cristã. Eram frases que Jan já tinha ouvido dez vezes, vinte vezes, trinta vezes, cem vezes, quinhentas vezes, mil vezes, e aqueles poucos metros de praia rapidamente se transformaram em anfiteatro. O homem falava, os outros todos ouviam com interesse, e os sexos deles, nus, olhavam estúpida e tristemente para a areia amarela.
Fim
Daphnis para Jan- Daphnis está deitado sob o sortilégio da nudez do corpo de Chloé, está excitado mas não sabe para onde o conduz aquela excitação, é uma excitação sem fim e sem quietação, que se estende ilimitadamente, a perder de vista. Uma imensa nostalgia aperta o coração de Jan, e tinah vontade de voltar atrás no tempo. Atrás, até esse jovem rapaz. Atrás, até ao princípio do amor. Desejava o desejo. Desejava o martelar do coração. Desejava estar deitado perto de Chloé e não saber o que é o amor carnal. não saber o que é a volúpia. Tranformar-se para não ser mais do que a excitação, a miraculosa perturbação do homem frente ao corpo de uma mulher. E disse alto: «Daphnis.»
Daphnis para Edwige- «Estás a chamar Daphnis?» «Sim, disse, estou a chamar Daphnis.» «Está certom disse Edwige, é preciso voltar a ele. Ir onde o homem ainda não foi mutilado pelo cristianismo. Era isso que querias dizer?» «Sim,» disse Jan, que queria dizer uma coisa completamente diferente. «Aí, talvez existisse um pequeno paraíso da natureza, continuou Edwige. Carneiros e pastores. Pessoas que pertencem à natureza. A liberdade dos sentidos. Para ti Daphnis é isso, não é?» Ele assegurou-lhe outra vez que era exactamente isso que ele queria dizer e Edwige afirmou: «Sim, tens razão, é a ilha de Daphnis!»
(E como lhe dava prazer desenvolver aquela relação baseada no mal entendido. Jan acrescentou: «E o hotel em que estamos devia chamar-se: Do outro lado - deste cárcere da nossa civilização.)
E riu-se. E passaram alguns anos e Jan esqueceu.
 
  6.
"Para liquidar os povos, dizia Hübl,começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se-lhes os livros, a cultura, a história. E outra pessoa qualquer escreve-lhes outros livros, dá-lhes outra cultura e inventa-lhes outra história. Em seguida, o povo começa lentamente a esquecer o que é e o que era. O mundo à sua volta esquece ainda mais depressa." (...)
Seis meses mais tarde, Hübl foi preso e condenado a longos anos de prisão. Nessa altura o meu pai estava a morrer.
Durante os seus últimos dez anos de vida foi perdendo gradualmente o uso da palavra. Ao princípio, só lhe faltavam algumas palavras, e no lugar delas dizia outras parecidas, e começava imediatamente a rir. Mas, no fim, só conseguia pronunciar muito poucas palavras e sempre que tentava explicitar o pensamento terminava com a mesma frase, uma das últimas que lhe restavam: É estranho.
Dizia é estranho, e tinha no olhar a surpresa imensa de saber tudo mas de nada poder dizer. As coisas tinham perdido o nome e confundiam-se num único ser indiferenciado. E só eu, quando lhe falava, podia fazer ressurgir por um instante, desse infinito sem palavras, o universo das entidades nomeadas.
Levava-o muitas vezes a passear. Dávamos invariavelmente a volta ao mesmo quarteirão de casas, o papá não tinha força para ir mais longe. andava mal, dava passos muito pequeninos e, logo que estava um pouco cansado, o corpo começava a curvar-se para a frente e perdia o equilíbrio. Precisávamos de parar frequentemente para ele descansar, com a testa encostada a uma parede.
Durante esses passeios discutíamos música. Enquanto o papá faiava normalmente, eu tinha-lhe feito poucas perguntas. E agora queria recuperar o tempo perdido. Falávamos portanto de música, mas era uma estranha conversa entre uma pessoa que não sabia nada, mas conhecia muitas palavras, e alguém que sabia tudo, mas não conhecia uma única palavra.
Ao longo de dez anos que durou a doença, o papá escreveu um grande livro sobre as sonatas de Beethoven. Escrevia evidentemente um pouco melhor do que falava mas, mesmo ao escrever, sentia cada vez mais dificuldades em encontrar as palavras, e o texto tornava-se incompreensível porque era composto por palavras inexistentes.
Um dia chamou-me ao quarto. Tinha aberto sobre o piano as variações da sonata opus 111. Disse-me «olha» «olha» e conseguiu ainda dizer depois de um longo esforço: «Agora sei!» e ainda tentou explicar-me algo que era importante, mas a sua mensagem era composta por palavras completamente incompreensíveis e, ao ver que eu não o percebia, olhou-me surpreendido e disse: «É estranho.»(...)

O homem sabe que não pode abarcar o universo com os seus sóis e as suas estrelas. É-lhe bem mais insuportável o estar condenado a falhar o outro infinito, esse infinito muito próximo e ao seu alcance. Tamina falhou o infinito do seu amor, eu falhei o papá, e cada um falha a sua obra, porque perseguindo a perfeição avança-se para o interior da coisa e aí nunca se pode ir até ao fim.
Que o infinito do mundo exterior nos escape, aceitamo-lo como uma condição natural. Mas censuramo-nos até à morte se falharmos o outro infinito. Pensamos no infinito das estrelas, mas não nos importamos com o infinito que o papá trazia em si.
Não é supreendente que, na maturidade, as variações se tivessem transformado na forma preferida de Beethoven, que sabia muito bem (como sabe Tamina e como eu sei) que não há nada mais intolerável do que falhar o ser que amámos, esses dezsseis compassos e o universo interior das suas possibilidades infinitas.
 
  5.
A litost é um estado tormentoso que nasce do espectáculo da nossa própria miséria subitamente descoberta.
Entre os remédios habituais contra a nossa própria miséria, há o amor. Porque aquele que é absolutamente amado não pode ser miserável. Todas as fraquezas são resgatadas pelo olhar mágico do amor, em que até a natação desajeitada, com a cabeça erguida acima da superfície da água, se pode tornar encantadora.(...)
A litost funciona como um motor de dois tempos. à angústia sucede o desejo de vingança. O objectivo da Vingança é conseguir que o parceiro se sinta igualmente miserável. O homem não sabe nadar, mas a mulher esbofeteada chora. Podem portanto sentir-se iguais e preseverar no seu amor.
Como a vingança nunca pode revelar o seu verdadeiro motivo (o estudante não pode confessar à jovem que lhe bateu por ela nadar mais depressa do que ele), tem de invocar falsas razões. A litost nunca passa, por isso, de uma patética hipocrisia.
(...)
Mas como poderá o estudante fazer mal a Christine? Antes de ter tido tempo para imaginar o que quer fosse, já ela subira para o comboio. Os teóricos conhecem uma situação deste género e afirmam que se assiste, nesse caso, àquilo que designam como bloqueio da litost.
É o pior que pode acontecer. A litost do estudante era como um tumor que aumentava de minuto para minuto e ele não sabia o que fazer com ela. Com não havia ali ninguém em quem pudesse vingar-se, aspirava pelo menos a uma consolação. Por isso se lembrou de Lermontov. Lembrou-se de Lermontov a quem Goethe havia ofendido, a quem Voltaire havia humilhado e que lhes tinha feito frente a todos gritando o seu orgulho, como se todos os poetas sentados em volta da mesa não passassem de professores de violino e ele os quisesse provocar para que o atirassem pela janela.
O estudante desejava Lermontov como se deseja um irmão e meteu a mão no bolso. Os dedos sentiram uma grande folha de papel, dobrada. Era uma folha arrancada a um caderno e onde se lia: Estou à tua espera. Amo-te. Christine. Meia-noite.
Compreendeu.O casaco que hoje vestia estava ontem pendurado num cabide, no quarto. A mensagem tardiamente descoberta só lhe confirmou o que já sabia. Tinha falhado o corpo de Christine por causa da sua própria estupidez. A litost enchia-o a transbordar e não descobria por onde fugir.
......................................................................
[e a título de curiosidade (e de provocação.)]
«(...)
--Ouve, Boccaccio, disse Goethe, porque é que te gabas sempre de seres misógino?
--Porque os misóginos são os melhores homens.»
A estas palavras, todos os poetas reagiram fazendo assuada. Boccaccio foi obrigado a elever a voz:
«Compreendam-me. O misógino não despreza as mulheres. O misógino não gosta da feminilidade. Os homens dividiram-se sempre em duas grandes categorias. Os adoradores de mulheres, por outras palavras os poetas, e os misóginos, ou, melhor dizendo, os ginófobos. Os adoradores ou poetas veneram os valores femininos tradicionais como o sentimento, o lar, a maternidade, a fecundidade, os lampejos sagrados da histeria, e a voz divina da natureza em nós, enquanto para os misóginos ou ginófobos esses valores inspiram um certo receio. Na mulher, o adorador venera a feminilidade, enquanto o misógino dá sempre preferência à mulher em prejuízo da feminilidade. Não esqueçam uma coisa: uma mulher só pode ser verdadeiramente feliz com um misógino. Connvosco, jamais uma mulher foi feliz!»

Misógino, adj. e s. m. que ou aquele que manifesta misoginia.
Misoginia, s. f. qualidade ou estado de misógino; horror às mulheres (o homem) ou às relações sexuais normais.
Ginofobia, s. f. aversão às mulheres; o m. q. ginecofobia. (Do gr. gyné, «mulher» + phoébeo, «ter horror».)
 
  4.
Thomas Mann, quando ainda era muito jovem, escreveu uma novela candidamente fascinante: nessa novela a morte é bela, como é bela para todos os que a sonham quando são muito novos e a morte é ainda irreal e encantadora, semelhante à voz azulada da lonjura.
Um jovem sofrendo de uma doença mortal sobe para um comboio, e sai numa gare desconhecida, entra numa cidade da qual ignora o nome e, numa casa qualquer, a casa de uma velha com o rosto coberto de rugas, aluga um quarto. Não, não vou contar o que se passa a seguir nesse alojamento subalugado, só quero apenas recordar um acontecimento anódino: quando o jovem doente andava no quarto, pensava ouvir nas salas vizinhas, por entre a cadência dos seus passos, um barulho indefinível, uma nota leve, límpida, metálica. Mas talvez não passasse de uma ilusão. Como se fosse um anel de ouro a cair num vaso de prata, pensava...
Na narrativa, este pormenor acústico não tem consequência nem explicação. Do ponto de vista estrito da acção, podia ser omitido sem inconvenientes. Aquele som retinia simplesmente; de improviso; assim.
Penso que Thomas Mann fez soar esta nota leve, límpida, metálica para que o silêncio nascesse. Tinha necessidade dela para que a beleza se tornasse audível, (porque a morte de que falava era a morte-beleza) e a beleza, para ser perceptível, necessita de um grau mínimo de silêncio (cuja medida é, precisamente, o som feito por um anel de ouro a cair num vaso de prata).
(Sim, eu sei, não sabem do que estou a falar porque a beleza já desapareceu há muito tempo. Desapareceu sob a superfície do ruído--ruído das palavras, ruído dos automóveis, ruído da música--no qual vivemos constantemente. Submersa como a Atlântida. Dela ficou uma palavra, cujo sentido é menos perceptível em cada ano que passa.)
Tamina ouviu pela primeira vez esse silêncio (precioso como um fragmento de estátua de mármore da Atlântida desaparecida) quando acordou, depois de ter fugido do seu país, num hotel da montanha rodeado por florestas. Ouviu-o uma segunda vez quando se atirou ao mar com o estômago cheio de comprimidos que lhe trouxeram, em vez de morte, uma paz inesperada. Esse silêncio, quer protegê-lo com e dentro do seu corpo. É por isso que a vejo no seu sonho em pé, encostada à vedação de arame; na boca, convulsivamente cerrada, tem um anel de ouro.
Na sua frente estão seis longos pescoços com minúsculas cabeças de bicos chatos que se abrem e fecham sem barulho. Ela não as compreende. Não sabe se as avestruzes a ameaçam, a avisam, a exortam ou lhe imploram. E como não sabe nada, sente uma imensa angústia. tem medo pelo anel de ouro (esse diapasão do silêncio) e guarda-o convulsivamente dentro da boca.
Tamina nunca saberá o que lhe vieram dizer aqueles grandes pássaros. Mas eu, eu sei. Não vieram nem para a avisar, nem para a chamar à ordem, nem para a ameaçar. Não se interessam absolutamente nada por ela. Vieram, cada um deles, para lhe falar de si. Para lhe dizer como comeu, como dormiu, como correu até à vedação e o que viu por detrás. Que passou a sua importante infância na importante aldeia de Rourou. Que o seu importante orgasmo durou seis horas. Que viu uma mulher passear atrás da vedação e que ela trazia um xaile. Que nadou, que adoeceu e em seguida se curou. Que andava de bicicleta quando era novo e que hoje comeu um saco de erva. Erguem-se todos em frente de Tamina e falam-lhe todos ao mesmo tempo, com veemência, com insistência e com agressividade porque não há nada no mundo mais importante do que aquilo que lhe querem dizer.
(...)
Saiu da casa de banho e a boca (ainda cheia de cheiro ácido) estava firmemente fechada.
Ele sentia-se embaraçado. Quis acompanhá-la a casa, mas ela não dizia uma palavra e continuava com a boca firmemente fechada (como no sonho em que conservava na boca um anel de ouro).
Ele falava, e como resposta ela limitava-se a apressar o passo. Bem depressa ele deixou de ter coisas para dizer, andou ainda uns metros perto dela em silêncio, depois ficou parado, sem se mexer. Ela ia em frente, a direito, e nem sequer se voltou.
Ela continou a servir cafés e nunca mais telefonou para Praga.

Anódino, s. m. remédio calmante; adj. que acalma as dores; (fig.) inofensivo; sem importância. (Gr. anódynos).
 
  3.
(A bela litania de Santa Annie Leclerc)
Rir? Pensamos alguma vez em rir? Quero dizer rir verdadeiramente, além da brincadeira, da troça, do ridículo. Rir, gozo imenso e delicioso, gozo completo...
Dizia à minha irmã ou dizia-me ela a mim, anda, vamos brincar a rir? Estendíamo-nos lado a lado sobre uma cama, e começávamos. A fingir, claro. Risos forçados. Risos ridículos. risos tão ridículos que nos faziam rir. Então chegava o verdadeiro riso, o riso inteiro, que nos transportava no seu imenso rebentar. Risos sem gargalhadas, redobrados, desordenados, desenfreados, risos magníficos, sumptuosos e loucos... E ríamos até ao infinito do riso dos nossos risos... Oh rir! rir de prazer, o prazer de rir; rir, é tão profundamente viver.
(...)
Cerca de vinte jovens, rapazes e raparigas de diversas nacionalidades, estavam sentados nas carteiras e olhavam distraidamente para Michèle e Gabrielle, que, com um ar nervoso, estavam de pé, em frente da cadeira em que se sentava a Sra. Raphaël. Tinham na mão várias folhas de papel cobertas pelo texto da exposição e, além disso, traziam um curioso objecto de cartão munido de um elástico.
«Vamos falar da peça de Ionesco, Rhinocéros», disse Michèle, e inclinou a cabeça para pôr em cima do nariz um tubo de cartão em que estavam colados bocadinhos de papéis multicolores, depois atou o cone atrás da cabeça com elástico. Gabrielle fez o mesmo. Depois olharam uma para a outra e emitiram, em tom agudo, sons breves e sacudidos.
A turma compreendera, aliás bastante facilmente, que as duas jovens queriam mostrar, primo, que o rinoceronte tem um chifre no lugar do nariz e, secundo, que a peça de Ionesco é cómica. Tinham decidido exprimir estas duas ideias por palavras, é certo, mas principalmente pela acção do próprio corpo.
(...)
Michèle e Gabrielle liam alternadamente a análise que tinham feito de Rhicnocéros e os longos cones de papel saíam-lhes da cara como uma prece vã. Sarah percebeu que seria uma pena não aproveitar a ocasião que se lhe oferecia. Como Michèle fazia uma pausa na sua intervenção e se voltava para Gabrielle para lhe indicar que era a vez dela, Sarah levantou-se da sua carteira e dirigiu-se às duas raparigas. Gabrielle, em vez de tomar a palavra, fixou sobre Sarah o orifício do falso nariz surpreendido, e ficou de boca aberta. Chegada ao pé das duas estudantes, Sarah passou por elas (como se o nariz postiço lhes pesasse demasiado na cabeça, as americanas não se voltaram para ver o que se passava por trás), tomou balanço, deu a Michèle um pontapé nas nádegas, voltou a tomar balanço e aplicou o pé, desta vez, no traseiro de Gabrielle. Depois voltou para o seu lugar calmamente, com um ar digno.
Nesse momento, reinou um silêncio absoluto.
Depois as lágrimas começaram a cair dos olhos de Míchèle, e, logo a seguir, dos olhos de Gabrielle.
Depois toda a turma desatou numa risada enorme.
Depois Sarah voltou a sentar-se no seu lugar.
Depois a Sra. Raphaël, primeiro apanhada desprevenida e chocada, percebeu que a intervenção de Sarah era um episódio arquitectado de uma partida de estudantes cuidadosamente preparada, que não tinha outro objectivo a não ser o de esclarecer o assunto da análise (a intervenção da obra de arte não se pode limitar à tradicional aproximação teória; é necessária uma aproximação moderna, uma leitura através da práxis, da acção, do happening), e como não via lágrimas das favoritas (as duas estavam de frente para a turma e, portanto, de costas para ela), inclinou a cabeça e deu o seu assentimento com uma gargalhada.
Michèle e Gabrielle, quando ouviram por trás o riso da professora bem amada, sentiram-se traídas. Agora, as lágrimas corriam-lhes dos olhos como de uma torneira. A humilhação magoava-as tanto que se torciam como se tivessem dores de estômago.
A Sra. Raphaël pensou que as convulsões das suas alunas favoritas eram um movimento de dança, e, nesse momento, uma força mais poderosa que a gravidade professoral lançou-a para fora da cadeira. Ria até chorar, (...) Aproximou-se das duas raparigas, que se torciam convulsivamente, e deu a mão a Michèle. Ei-las as três diante das carteiras.(...)
As três mulheres dançavam e riam, e a turma calava-se e olhava num espanto mudo. Mas as três mulheres já nem reparavam nos outros, estavam completamente concentradas em si próprias e no seu prazer.(...) Por essa abertura, subiam cada vez mais alto, os narizes de papel já não se conseguiam ver, já só havia três pares de sapatos que estavam do lado de fora do buraco aberto, e que acabaram por desaparecer também, enquanto do alto chegava aos ouvidos dos alunos petrificados o riso que se afastava, o riso resplandescente dos três arcanjos.
 
  2.
E de repente, apetecera-lhe cantar-lhes algumas canções patrióticas que se cantavam naquele tempo. Ou recitar-lhes poemas! Evidentemente que ainda sabia muitos de cor. Logo a seguir à guerra, a mamã recitara um poema numa reunião solene do colégio. Celebrava-se o fim do Império Austríaco. Celebrava-se a independência! E imaginem que de repente, ao chegar à última estrofe, ela teve um esquecimento; não conseguia lembrar-se da continuação. Calou-se, o suor corria-lhe pela testa, pensou que ia morrer de vergonha. E em uníssono, inesperadamente, estalaram grandes aplausos! Todos pensaram que o poema tinha acabado, ninguém se apercebeu que faltava a última estrofe! Mas, apesar disso a mamã estava desesperada e, envergonhada, correu a fechar-se na casa de banho, mas o próprio director do colégio correu a procurá-la e durante muito tempo bateu à porta suplicando-lhe que não chorasse, que saísse, porque tinha sido um sucesso.
A prima ria e a mamã olhava-a demoradamente: «Faz-me lembrar alguém, meu Deus, mas quem é que me faz lembrar...
--Mas depois da guerra já não ias ao colégio, observou Karel.
--Parece-me que eu é que sei quando ia ao colégio!
--Mas fizeste o exame no último ano da guerra. Ainda era a Áustria-Hungria.
--Eu é que sei quando fiz o exame.» Respondeu com iritação. Mas nesse momento já sabia que Karel não se enganava. Era exacto, terminara o liceu durante a guerra. Mas então de onde é que lhe viera esta recordação da reunião solene no colégio depois da guerra? De repente, a mamã hesitava e calava-se.
Durante esse breve silêncio, ouviu-se a voz de Márketa. Dirigia-se a Eva e o que dizia não se relacionava nem com a récita da mamã nem com 1918.
A mamã sente-se abandonada nas suas recordações, traída por aquele súbito desinteresse e pela falha de memória.
«Divirtam-se, meus filhos, vocês são novos e têm muitas coisas a dizer uns aos outros.» Assaltada por um brusco descontentamento, voltou para o quarto do neto.
 
sábado, junho 04, 2005
  1.
Zdena levantou a cabeça, surpreendida: «Cartas?
--Sim, as minhas cartas. Devo ter-te escrito umas cem, na altura.
--Sim, as tuas cartas, eu sei», diz, e bruscamente deixa de desviar o olhar; fixa-o de frente, nos olhos. Mirek tem a impressão desagradável que ela lhe vê o fundo da alma, que sabe exactamente o que ele quer e porquê.
«As tuas cartas, sim, as tuas cartas, repete. Reli-as ainda há pouco tempo. Perguntei-me como pudeste ser capaz de uma tal explosão de sentimento.»
E repete muitas vezes estas palavras, explosão de sentimento, não as pronuncia nem depressa nem com uma articulação precipitada, mas lentamente e com uma voz ponderada, como se visasse um alvo que não quer falhar, sem deixar de olhar; para ter a certeza de ter acertado.
(...)
«Para que te podiam servir as cartas?, perguntou ela. Afinal porque é que as queres?»
Não podia dizer-lhe que as queria deitar para o caixote do lixo. Fez portanto uma voz melancólica e começou a contar-lhe que estava na idade em que se olha para trás.
(Sentia-se pouco à vontade ao dizer isto, tinha a impresão de que o seu conto de fadas não era convincente, e tinha vergonha.)
Sim, olha para trás, porque hoje esqueceu o que fora quando era jovem. Sabe que falhou. É por isso que queria saber de onde partira, para perceber em que ponto errara. É por isso que quer voltar à correspondência com Zdena, para nela reencontrar o segredo da sua juventude, dos seus começos e das suas raízes.
Ela abanou a cabeça: «Nunca te darei as cartas.»
Ele mentiu: «Só as queria emprestadas.»
Ela abanou novamente a cabeça.
Ele imaginou que algures, neste apartamento, estavam as suas cartas, que ela podia a todo o momento dar a ler a qualquer pessoa. Achava insuportável que uma parte da sua vida ficasse entre as mãos de Zdena, e apetecia-lhe atirar-lhe à cabeça com o grande cinzeiro de vidro que estava pousado entre eles sobre a mesa baixa e levar as cartas. Em vez disso, recomeçou a explicar que olhava para trás e que queria saber de onde partira.
Ela levantou os olhos e fê-lo calar-se com um olhar: «Nunca te darei as cartas. Nunca.»
 
  Kniha smichu a zapomneni en sept pièces
Este livro é todo ele um romance em forma de variações. As diferentes partes sucedem-se como as diferentes etapas de uma viagem que conduz ao interior de um tema, ao interior de um pensamento, ao interior de uma só e única situação cuja compreensão para mim se perde na imensidade. É um romance sobre Tamina e, no instante em que Tamina sai de cena, é um romance para Tamina. Ela é a personagem principal e o ouvinte principal e todas as outras histórias são uma variação sobre a sua própria história e juntam-se na vida dela como num espelho.
É um romance sobre o riso e sobre o esquecimento, sobre o esquecimento e sobre Praga, sobre Praga e sobre os anjos.
Milan Kundera
Humor e profunda tristeza... O Riso... O Esquecimento...
Humor e profunda tristeza... O Esquecimento... O Riso...
Profunda tristeza e humor... O Esquecimento... O Riso...
Profunda tristeza e humor... O Riso... O Esquecimento...


Sorrir é viver. Esquecer é existir.
Eis as sete partes:
 
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
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