Grandes dias, pequenas existências
terça-feira, fevereiro 28, 2006
  Pré-Capote

I don't use a typewriter.
I write longhand, with a pencil. Essentially I'm a horizontal writer.
I think better when I'm lying down.

Truman Capote

 
segunda-feira, fevereiro 13, 2006
  A Cidade
Enquanto fazia os recados aos pais, no dia anterior, J. olhara à volta a cidade solarenga e nunca ela lhe parecera tão bonita. Nesse dia, com uma estrada pelo meio, J. viu de um lado o metro e os autocarros da industrialização com um toque contemporânea de fontes e relva macia; do outro lado, J. viu um pastor com ovehas sujas e tresmalhadas, a pastarem num prado imenso e maltratado. E um menino que corria com o cão-pastor, guardando na memória aqueles dias de pastor, sem pressas e sem segredos.
 
sábado, fevereiro 11, 2006
  Uma dívida de gratidão
Desde que se lembra de ser gente, J. lembra também a Doença e a Morte, convidadas resfastaladas nos sofás da sua vida, sem convite, sem respeito.
Hoje, J. olha a Morte no sofá que agarra a mão do sobrinho. J. sabe que a morte não vai levar o sobrinho dela quando partir (antes de voltar a instalar-se noutro sofá da vida de J.) mas não consegue deixar de pensar que aquele sobrinho está, depois de descoberto num acaso de ligação tia-sobrinho, a morrer um bocadinho com a mão da tia Morte na sua.
J. observa também, e esta parte é bastante inevitável de não observar dada a natural curiosidade de J., que desta feita, a Morte tem desta vez pelos em sítios do corpo onde não devia ter e pouco pêlo onde devia haver muito. A Morte deve ser provavelmente senil. E esta Morte que se instala num dos sofás de J. também não tem mamas. E é amarela.
J. tenta recordar-se então de convidadas antigas, já partidas, com nomes como Doença e Morte. Já houve umas mais apresentáveis. Esta que agora convive consigo não é tanto assim. Mas não se pode exigir muito de convidados. Esta Morte deve ser das convidadas mais inteligentes que J. já conheceu e por isso, sente prazer quando grita aos ouvidos surdos da tia Morte palavras fugidias. J. e Morte sorriem. Morte tosse.
J. pensa mais um bocado nas convidadas que eternamente se sentarão nos seus sofás.
 
  J.redescobre a sua palavra de estimação
Pequena ou grande, J. lembrava-se de usar uma palavra com 7 letras. Usava-a muito, para dizer isto e outras coisas. Não dizia asneiras e tinha uma boca muito limpinha. J. sentia-se sempre um pouco limpa demais mas quando soube da paixoneta de F. (para preservar a identidade da alma perfeita que F. foi e, inevitavelmente, é, F. mantém-se F. e não outra coisa) pela sua incessante palavra de estimação, sentiu-se feliz, correu, largou aos pinotes e usou-a até se desgastar.
Num dia 11 de Fevereiro, J. ouvia uma música de uma TAL, e lembrou-se da palavra. Sentiu saudades.
Nesse mesmo dia, J. entrou num processo alargado de conversações com a palavra, que durou dois minutos. No fim, acabou por fazer muito sentido e fizeram-se as pazes. J. conseguiu voltar a dizer Imenso e Imenso sentiu-se completa como há muito não se sentia; J. certificou-se disso.
 
  O início
Era pequena, com alguns anos ou pouco mais. Sentia-se pequena, insegura. Queria escrever e não sabia sobre o quê. Lembrou-se, de rompante, ao ouvir Inverno, de uma história longa que era escrita todos os dias e nunca acabava.
Também com um nome de uma só letra, por força das circunstâncias que a foram despindo, J. sentiu-se agoniada com o pecado capital que acabava de cometer; roubar pormenores da história de um outro ser devia ser provavelmente o crime mais hediondo do mundo mas J. sentia-se um pouco mais despreocupada quando se lembrava que se passava tudo em sonhos e que nunca ninguém saberia.
Assim, J. principiou a sua história de mundos de ideias de insegurança e pequenez no meio da terra inteira. Reinventou-se uma vida nesse dia.
(J. sentiu-se pesada à mesma.)
 
sexta-feira, fevereiro 10, 2006
  Uma Pessoa na Cidade
Agarro a madrugada como se fosse uma criança
(uma roseira entrelaçada, uma videira de esperança,
tal qual o corpo da cidade que manhã cedo ensaia a dança)
de quem por força da vontade de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta Lua, que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua que desagua no Rossio.
Nele sou uma Pessoa na Cidade, que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade, com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslocada da Lua cheia de Lisboa,
até que a Lua apaixonada cresça na vela da canoa.

Eu sou a gaivota que derrota todo o mau tempo no mar alto.
Eu sou a Pessoa que transporta a maré-povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada colho a manhã como uma flor
à beira-mágoa desfolhada, um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém.
O malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada abriu a flor
e abriu também
a flor sem medo, refulgada, com o aroma que o mar tem.
Flor de lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.

TAL/Ary dos Santos
 
  Black
Há depois uma raça que, não considerando superior porque sem intenção de menosprezar as já referidas personagens dessas valsas desonestas, baseia a sua existência na existência de uma verdadeira relação puramente recíproca. Desta raça fazem parte, apenas e só, as estrelas. Não sei, contudo, caro Wilde, se as personagens destas valsas já honestas (honestíssimas) nascem estrelas. Acredita no destino? Penso que o nascer-se predestinado é uma criação de falsa (ou verdadeira, porque não?) segurança auto-concedida. Por estrelas e por valas que se julgam estrelas. Mas com ou sem destino concedido, uma estrela encontra um dia uma estrela. São duas estrelas que não eram estrelas até um dia uma encontrar a outra, ou melhor, se encontrarem. E deixam de ser valas assim mesmo, no instante em que nasce a aliança que se alicerçará numa imensidão de ética e de sentimentos bonitos compartilhados; que, ao de leve pousados numa balança de mercearia, mostram que há estrelas, raro, que brilham na eterna certeza de um apego romanticamente sonhado e, para sempre, humildemente desacreditado.

"I know you'll be a star in someone else's sky; but why, why can't it be mine?"
 
terça-feira, fevereiro 07, 2006
  Eu apontei
«To love is to suffer. To avoid suffering one must not love. But then, one suffers from not loving. Therefore to love is to suffer, not to love is to suffer. To suffer is to suffer. To be happy is to love. To be happy then is to suffer. But suffering makes one unhappy. Therefore, to be unhappy one must love, or love to suffer, or suffer from too much happiness. I hope you're getting this down.» Woody Allen
 
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
maio 2005 / junho 2005 / julho 2005 / agosto 2005 / setembro 2005 / outubro 2005 / novembro 2005 / dezembro 2005 / janeiro 2006 / fevereiro 2006 / março 2006 / maio 2006 /


Powered by Blogger