Grandes dias, pequenas existências
domingo, junho 05, 2005
  2.
E de repente, apetecera-lhe cantar-lhes algumas canções patrióticas que se cantavam naquele tempo. Ou recitar-lhes poemas! Evidentemente que ainda sabia muitos de cor. Logo a seguir à guerra, a mamã recitara um poema numa reunião solene do colégio. Celebrava-se o fim do Império Austríaco. Celebrava-se a independência! E imaginem que de repente, ao chegar à última estrofe, ela teve um esquecimento; não conseguia lembrar-se da continuação. Calou-se, o suor corria-lhe pela testa, pensou que ia morrer de vergonha. E em uníssono, inesperadamente, estalaram grandes aplausos! Todos pensaram que o poema tinha acabado, ninguém se apercebeu que faltava a última estrofe! Mas, apesar disso a mamã estava desesperada e, envergonhada, correu a fechar-se na casa de banho, mas o próprio director do colégio correu a procurá-la e durante muito tempo bateu à porta suplicando-lhe que não chorasse, que saísse, porque tinha sido um sucesso.
A prima ria e a mamã olhava-a demoradamente: «Faz-me lembrar alguém, meu Deus, mas quem é que me faz lembrar...
--Mas depois da guerra já não ias ao colégio, observou Karel.
--Parece-me que eu é que sei quando ia ao colégio!
--Mas fizeste o exame no último ano da guerra. Ainda era a Áustria-Hungria.
--Eu é que sei quando fiz o exame.» Respondeu com iritação. Mas nesse momento já sabia que Karel não se enganava. Era exacto, terminara o liceu durante a guerra. Mas então de onde é que lhe viera esta recordação da reunião solene no colégio depois da guerra? De repente, a mamã hesitava e calava-se.
Durante esse breve silêncio, ouviu-se a voz de Márketa. Dirigia-se a Eva e o que dizia não se relacionava nem com a récita da mamã nem com 1918.
A mamã sente-se abandonada nas suas recordações, traída por aquele súbito desinteresse e pela falha de memória.
«Divirtam-se, meus filhos, vocês são novos e têm muitas coisas a dizer uns aos outros.» Assaltada por um brusco descontentamento, voltou para o quarto do neto.
 
Comments: Enviar um comentário



<< Home
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
maio 2005 / junho 2005 / julho 2005 / agosto 2005 / setembro 2005 / outubro 2005 / novembro 2005 / dezembro 2005 / janeiro 2006 / fevereiro 2006 / março 2006 / maio 2006 /


Powered by Blogger