Grandes dias, pequenas existências
domingo, junho 05, 2005
  3.
(A bela litania de Santa Annie Leclerc)
Rir? Pensamos alguma vez em rir? Quero dizer rir verdadeiramente, além da brincadeira, da troça, do ridículo. Rir, gozo imenso e delicioso, gozo completo...
Dizia à minha irmã ou dizia-me ela a mim, anda, vamos brincar a rir? Estendíamo-nos lado a lado sobre uma cama, e começávamos. A fingir, claro. Risos forçados. Risos ridículos. risos tão ridículos que nos faziam rir. Então chegava o verdadeiro riso, o riso inteiro, que nos transportava no seu imenso rebentar. Risos sem gargalhadas, redobrados, desordenados, desenfreados, risos magníficos, sumptuosos e loucos... E ríamos até ao infinito do riso dos nossos risos... Oh rir! rir de prazer, o prazer de rir; rir, é tão profundamente viver.
(...)
Cerca de vinte jovens, rapazes e raparigas de diversas nacionalidades, estavam sentados nas carteiras e olhavam distraidamente para Michèle e Gabrielle, que, com um ar nervoso, estavam de pé, em frente da cadeira em que se sentava a Sra. Raphaël. Tinham na mão várias folhas de papel cobertas pelo texto da exposição e, além disso, traziam um curioso objecto de cartão munido de um elástico.
«Vamos falar da peça de Ionesco, Rhinocéros», disse Michèle, e inclinou a cabeça para pôr em cima do nariz um tubo de cartão em que estavam colados bocadinhos de papéis multicolores, depois atou o cone atrás da cabeça com elástico. Gabrielle fez o mesmo. Depois olharam uma para a outra e emitiram, em tom agudo, sons breves e sacudidos.
A turma compreendera, aliás bastante facilmente, que as duas jovens queriam mostrar, primo, que o rinoceronte tem um chifre no lugar do nariz e, secundo, que a peça de Ionesco é cómica. Tinham decidido exprimir estas duas ideias por palavras, é certo, mas principalmente pela acção do próprio corpo.
(...)
Michèle e Gabrielle liam alternadamente a análise que tinham feito de Rhicnocéros e os longos cones de papel saíam-lhes da cara como uma prece vã. Sarah percebeu que seria uma pena não aproveitar a ocasião que se lhe oferecia. Como Michèle fazia uma pausa na sua intervenção e se voltava para Gabrielle para lhe indicar que era a vez dela, Sarah levantou-se da sua carteira e dirigiu-se às duas raparigas. Gabrielle, em vez de tomar a palavra, fixou sobre Sarah o orifício do falso nariz surpreendido, e ficou de boca aberta. Chegada ao pé das duas estudantes, Sarah passou por elas (como se o nariz postiço lhes pesasse demasiado na cabeça, as americanas não se voltaram para ver o que se passava por trás), tomou balanço, deu a Michèle um pontapé nas nádegas, voltou a tomar balanço e aplicou o pé, desta vez, no traseiro de Gabrielle. Depois voltou para o seu lugar calmamente, com um ar digno.
Nesse momento, reinou um silêncio absoluto.
Depois as lágrimas começaram a cair dos olhos de Míchèle, e, logo a seguir, dos olhos de Gabrielle.
Depois toda a turma desatou numa risada enorme.
Depois Sarah voltou a sentar-se no seu lugar.
Depois a Sra. Raphaël, primeiro apanhada desprevenida e chocada, percebeu que a intervenção de Sarah era um episódio arquitectado de uma partida de estudantes cuidadosamente preparada, que não tinha outro objectivo a não ser o de esclarecer o assunto da análise (a intervenção da obra de arte não se pode limitar à tradicional aproximação teória; é necessária uma aproximação moderna, uma leitura através da práxis, da acção, do happening), e como não via lágrimas das favoritas (as duas estavam de frente para a turma e, portanto, de costas para ela), inclinou a cabeça e deu o seu assentimento com uma gargalhada.
Michèle e Gabrielle, quando ouviram por trás o riso da professora bem amada, sentiram-se traídas. Agora, as lágrimas corriam-lhes dos olhos como de uma torneira. A humilhação magoava-as tanto que se torciam como se tivessem dores de estômago.
A Sra. Raphaël pensou que as convulsões das suas alunas favoritas eram um movimento de dança, e, nesse momento, uma força mais poderosa que a gravidade professoral lançou-a para fora da cadeira. Ria até chorar, (...) Aproximou-se das duas raparigas, que se torciam convulsivamente, e deu a mão a Michèle. Ei-las as três diante das carteiras.(...)
As três mulheres dançavam e riam, e a turma calava-se e olhava num espanto mudo. Mas as três mulheres já nem reparavam nos outros, estavam completamente concentradas em si próprias e no seu prazer.(...) Por essa abertura, subiam cada vez mais alto, os narizes de papel já não se conseguiam ver, já só havia três pares de sapatos que estavam do lado de fora do buraco aberto, e que acabaram por desaparecer também, enquanto do alto chegava aos ouvidos dos alunos petrificados o riso que se afastava, o riso resplandescente dos três arcanjos.
 
Comments: Enviar um comentário



<< Home
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
maio 2005 / junho 2005 / julho 2005 / agosto 2005 / setembro 2005 / outubro 2005 / novembro 2005 / dezembro 2005 / janeiro 2006 / fevereiro 2006 / março 2006 / maio 2006 /


Powered by Blogger