Grandes dias, pequenas existências
domingo, junho 05, 2005
  4.
Thomas Mann, quando ainda era muito jovem, escreveu uma novela candidamente fascinante: nessa novela a morte é bela, como é bela para todos os que a sonham quando são muito novos e a morte é ainda irreal e encantadora, semelhante à voz azulada da lonjura.
Um jovem sofrendo de uma doença mortal sobe para um comboio, e sai numa gare desconhecida, entra numa cidade da qual ignora o nome e, numa casa qualquer, a casa de uma velha com o rosto coberto de rugas, aluga um quarto. Não, não vou contar o que se passa a seguir nesse alojamento subalugado, só quero apenas recordar um acontecimento anódino: quando o jovem doente andava no quarto, pensava ouvir nas salas vizinhas, por entre a cadência dos seus passos, um barulho indefinível, uma nota leve, límpida, metálica. Mas talvez não passasse de uma ilusão. Como se fosse um anel de ouro a cair num vaso de prata, pensava...
Na narrativa, este pormenor acústico não tem consequência nem explicação. Do ponto de vista estrito da acção, podia ser omitido sem inconvenientes. Aquele som retinia simplesmente; de improviso; assim.
Penso que Thomas Mann fez soar esta nota leve, límpida, metálica para que o silêncio nascesse. Tinha necessidade dela para que a beleza se tornasse audível, (porque a morte de que falava era a morte-beleza) e a beleza, para ser perceptível, necessita de um grau mínimo de silêncio (cuja medida é, precisamente, o som feito por um anel de ouro a cair num vaso de prata).
(Sim, eu sei, não sabem do que estou a falar porque a beleza já desapareceu há muito tempo. Desapareceu sob a superfície do ruído--ruído das palavras, ruído dos automóveis, ruído da música--no qual vivemos constantemente. Submersa como a Atlântida. Dela ficou uma palavra, cujo sentido é menos perceptível em cada ano que passa.)
Tamina ouviu pela primeira vez esse silêncio (precioso como um fragmento de estátua de mármore da Atlântida desaparecida) quando acordou, depois de ter fugido do seu país, num hotel da montanha rodeado por florestas. Ouviu-o uma segunda vez quando se atirou ao mar com o estômago cheio de comprimidos que lhe trouxeram, em vez de morte, uma paz inesperada. Esse silêncio, quer protegê-lo com e dentro do seu corpo. É por isso que a vejo no seu sonho em pé, encostada à vedação de arame; na boca, convulsivamente cerrada, tem um anel de ouro.
Na sua frente estão seis longos pescoços com minúsculas cabeças de bicos chatos que se abrem e fecham sem barulho. Ela não as compreende. Não sabe se as avestruzes a ameaçam, a avisam, a exortam ou lhe imploram. E como não sabe nada, sente uma imensa angústia. tem medo pelo anel de ouro (esse diapasão do silêncio) e guarda-o convulsivamente dentro da boca.
Tamina nunca saberá o que lhe vieram dizer aqueles grandes pássaros. Mas eu, eu sei. Não vieram nem para a avisar, nem para a chamar à ordem, nem para a ameaçar. Não se interessam absolutamente nada por ela. Vieram, cada um deles, para lhe falar de si. Para lhe dizer como comeu, como dormiu, como correu até à vedação e o que viu por detrás. Que passou a sua importante infância na importante aldeia de Rourou. Que o seu importante orgasmo durou seis horas. Que viu uma mulher passear atrás da vedação e que ela trazia um xaile. Que nadou, que adoeceu e em seguida se curou. Que andava de bicicleta quando era novo e que hoje comeu um saco de erva. Erguem-se todos em frente de Tamina e falam-lhe todos ao mesmo tempo, com veemência, com insistência e com agressividade porque não há nada no mundo mais importante do que aquilo que lhe querem dizer.
(...)
Saiu da casa de banho e a boca (ainda cheia de cheiro ácido) estava firmemente fechada.
Ele sentia-se embaraçado. Quis acompanhá-la a casa, mas ela não dizia uma palavra e continuava com a boca firmemente fechada (como no sonho em que conservava na boca um anel de ouro).
Ele falava, e como resposta ela limitava-se a apressar o passo. Bem depressa ele deixou de ter coisas para dizer, andou ainda uns metros perto dela em silêncio, depois ficou parado, sem se mexer. Ela ia em frente, a direito, e nem sequer se voltou.
Ela continou a servir cafés e nunca mais telefonou para Praga.

Anódino, s. m. remédio calmante; adj. que acalma as dores; (fig.) inofensivo; sem importância. (Gr. anódynos).
 
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