Grandes dias, pequenas existências
domingo, junho 05, 2005
  6.
"Para liquidar os povos, dizia Hübl,começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se-lhes os livros, a cultura, a história. E outra pessoa qualquer escreve-lhes outros livros, dá-lhes outra cultura e inventa-lhes outra história. Em seguida, o povo começa lentamente a esquecer o que é e o que era. O mundo à sua volta esquece ainda mais depressa." (...)
Seis meses mais tarde, Hübl foi preso e condenado a longos anos de prisão. Nessa altura o meu pai estava a morrer.
Durante os seus últimos dez anos de vida foi perdendo gradualmente o uso da palavra. Ao princípio, só lhe faltavam algumas palavras, e no lugar delas dizia outras parecidas, e começava imediatamente a rir. Mas, no fim, só conseguia pronunciar muito poucas palavras e sempre que tentava explicitar o pensamento terminava com a mesma frase, uma das últimas que lhe restavam: É estranho.
Dizia é estranho, e tinha no olhar a surpresa imensa de saber tudo mas de nada poder dizer. As coisas tinham perdido o nome e confundiam-se num único ser indiferenciado. E só eu, quando lhe falava, podia fazer ressurgir por um instante, desse infinito sem palavras, o universo das entidades nomeadas.
Levava-o muitas vezes a passear. Dávamos invariavelmente a volta ao mesmo quarteirão de casas, o papá não tinha força para ir mais longe. andava mal, dava passos muito pequeninos e, logo que estava um pouco cansado, o corpo começava a curvar-se para a frente e perdia o equilíbrio. Precisávamos de parar frequentemente para ele descansar, com a testa encostada a uma parede.
Durante esses passeios discutíamos música. Enquanto o papá faiava normalmente, eu tinha-lhe feito poucas perguntas. E agora queria recuperar o tempo perdido. Falávamos portanto de música, mas era uma estranha conversa entre uma pessoa que não sabia nada, mas conhecia muitas palavras, e alguém que sabia tudo, mas não conhecia uma única palavra.
Ao longo de dez anos que durou a doença, o papá escreveu um grande livro sobre as sonatas de Beethoven. Escrevia evidentemente um pouco melhor do que falava mas, mesmo ao escrever, sentia cada vez mais dificuldades em encontrar as palavras, e o texto tornava-se incompreensível porque era composto por palavras inexistentes.
Um dia chamou-me ao quarto. Tinha aberto sobre o piano as variações da sonata opus 111. Disse-me «olha» «olha» e conseguiu ainda dizer depois de um longo esforço: «Agora sei!» e ainda tentou explicar-me algo que era importante, mas a sua mensagem era composta por palavras completamente incompreensíveis e, ao ver que eu não o percebia, olhou-me surpreendido e disse: «É estranho.»(...)

O homem sabe que não pode abarcar o universo com os seus sóis e as suas estrelas. É-lhe bem mais insuportável o estar condenado a falhar o outro infinito, esse infinito muito próximo e ao seu alcance. Tamina falhou o infinito do seu amor, eu falhei o papá, e cada um falha a sua obra, porque perseguindo a perfeição avança-se para o interior da coisa e aí nunca se pode ir até ao fim.
Que o infinito do mundo exterior nos escape, aceitamo-lo como uma condição natural. Mas censuramo-nos até à morte se falharmos o outro infinito. Pensamos no infinito das estrelas, mas não nos importamos com o infinito que o papá trazia em si.
Não é supreendente que, na maturidade, as variações se tivessem transformado na forma preferida de Beethoven, que sabia muito bem (como sabe Tamina e como eu sei) que não há nada mais intolerável do que falhar o ser que amámos, esses dezsseis compassos e o universo interior das suas possibilidades infinitas.
 
Comments: Enviar um comentário



<< Home
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
maio 2005 / junho 2005 / julho 2005 / agosto 2005 / setembro 2005 / outubro 2005 / novembro 2005 / dezembro 2005 / janeiro 2006 / fevereiro 2006 / março 2006 / maio 2006 /


Powered by Blogger