Grandes dias, pequenas existências
domingo, junho 05, 2005
  7.
O que Jan achava cada vez mais interessante nas mulheres durante o amor era o rosto delas. O movimento dos corpos parecia desenvolver uma longa película cinematográfica, projectando sobre o rosto, como sobre o ecrân de um televisor, um filme cativante repleto de perturbação, de expectativa, de explosão, de dor, de gritos, de emoção e de ódio. Mas o rosto de Edwige era um ecrân apagado para o qual Jan olhava fixamente, atormentado por perguntas para as quais não encontrava resposta...
(...)
Pequenos grupos de pessoas nuas aproximavam-se deles; Edwige apresentou-lhes Jan. As pessoas apertavam-lhe a mão, saudavam-no, declinavam os títulos e diziam que estavam encantadas. Depois, abordaram temas diversos; a temperatura da água, a hipocrisia da sociedade que mutila a alma e o corpo, a beleza da ilha.
Sobre este último assunto, Edwige fez questão de sublinhar: «Jan acaba de dizer que é a ilha de Daphnis. Acho que tem razão.»
Toda a gente ficou encantada com aquele achado, e um homem extraordinariamente barrigudo desenvolveu a ideia de que a civilização ocidental ia morrer e a humanidade ficaria finalmente liberta do fardo escarvizante da tradiçao judaico-cristã. Eram frases que Jan já tinha ouvido dez vezes, vinte vezes, trinta vezes, cem vezes, quinhentas vezes, mil vezes, e aqueles poucos metros de praia rapidamente se transformaram em anfiteatro. O homem falava, os outros todos ouviam com interesse, e os sexos deles, nus, olhavam estúpida e tristemente para a areia amarela.
Fim
Daphnis para Jan- Daphnis está deitado sob o sortilégio da nudez do corpo de Chloé, está excitado mas não sabe para onde o conduz aquela excitação, é uma excitação sem fim e sem quietação, que se estende ilimitadamente, a perder de vista. Uma imensa nostalgia aperta o coração de Jan, e tinah vontade de voltar atrás no tempo. Atrás, até esse jovem rapaz. Atrás, até ao princípio do amor. Desejava o desejo. Desejava o martelar do coração. Desejava estar deitado perto de Chloé e não saber o que é o amor carnal. não saber o que é a volúpia. Tranformar-se para não ser mais do que a excitação, a miraculosa perturbação do homem frente ao corpo de uma mulher. E disse alto: «Daphnis.»
Daphnis para Edwige- «Estás a chamar Daphnis?» «Sim, disse, estou a chamar Daphnis.» «Está certom disse Edwige, é preciso voltar a ele. Ir onde o homem ainda não foi mutilado pelo cristianismo. Era isso que querias dizer?» «Sim,» disse Jan, que queria dizer uma coisa completamente diferente. «Aí, talvez existisse um pequeno paraíso da natureza, continuou Edwige. Carneiros e pastores. Pessoas que pertencem à natureza. A liberdade dos sentidos. Para ti Daphnis é isso, não é?» Ele assegurou-lhe outra vez que era exactamente isso que ele queria dizer e Edwige afirmou: «Sim, tens razão, é a ilha de Daphnis!»
(E como lhe dava prazer desenvolver aquela relação baseada no mal entendido. Jan acrescentou: «E o hotel em que estamos devia chamar-se: Do outro lado - deste cárcere da nossa civilização.)
E riu-se. E passaram alguns anos e Jan esqueceu.
 
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