Grandes dias, pequenas existências
segunda-feira, junho 13, 2005
  Garrafeiras e urgências
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

Adeus ó homens bons.
Adeus que hoje partiram e deixam já saudade nos corações de quem vos sonha. De quem sonha um filho, um pai, um irmão como vós. Com Eugeniana doçura e Eugenianas aprendizagens da terra, das palavras, do empenho que é poetizar esta exaltação que cada um consome. Com Cunhal integridade e coragem, velhice merecida de quem lutou pelos que viriam, pelos que hoje o choram, por mim que hoje te choro, velho Álvaro, porque vejo em ti o meu lindíssimo Sérgio que como tu por nós lutou e como tu partirá em breve.
Adeus ó homens bons.
Adeus à garrafeira que ficará sempre como marco de identidade e princípio. A chave da renúncia às depravações, a chave pequenina que te marcou como o homem digno que és.
Adeus ó homens bons.
Adeus Eugénio, adeus às tuas urgências. Escreveste as dignificações do que merece ser dignificado, escreveste palavras gastas reinventadas e reinventaste o (teu) amor nos peitos de quem te leu. Adeus bom Eugénio que te choro também, que escondo o choro como nunca o fiz porque pura demais a tua morte. Ansiada(?) Merecido descanso...!
Adeus ó homens bons!
Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.

Kundera diz que os grandes homens de quem se aprende o nome cedo têm algo de irreal e de imaterial, entram vivos na majestosa galeria dos mortos.
Vós, bons homens, entraram hoje mortos na galeria dos recordados e por isso eternamente presentes.

Adeus. Vão com as aves. J.A.V.
 
Comments:
Eugénio. Perdemos uma das nossas grandes "previsibilidades". Os portos de abrigo vão sendo dia a dia cada vez menos. Mas ele foi com as aves.
 
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