Grandes dias, pequenas existências
quarta-feira, junho 08, 2005
  Portos de Abrigo
Eu e o Miguel temos um relacionamento bonito.
Temos grandes conversas... Grandes não pela grandiosidade do assunto nem pela extensão das conversas em si mas porque tudo o que dizemos um ao outro é sempre expresso de uma maneira honesta e desinteressada. Gosto realmente de irritar o Miguel diariamente. E ele gosta genuinamente de me dizer todos os dias "Esse feitiozinho..." Somos o que se pode chamar de amigos, ainda que este conceito se tenha tornado um pouco ambíguo ao longo dos anos, especialmente para mim.
Sim! Somos amigos. Nem sempre o posso ouvir. Nem ele a mim. Mas não há sentimentos de culpa ou de desdém por parte do outro quando isso acontece. Sabemos aceitar o que acontece entre nós sem nos chatearmos muito com isso. E quando de facto podemos ouvir-nos temos um entendimento maravilhoso, daqueles que ninguém julga possível.

E neste dia de calor, numa das nossas grandes conversas, fizemos uma descoberta.
O porquê de eu gostar realmente de irritar o Miguel e o porquê de ele se queixar diariamente do meu feitiozinho. Previsibilidades.

São facilmente denominadas de tudo e de coisa nenhuma, inclusivé de "nada" nas bocas e mentes daqueles que não aceitam que possam depender delas. Mas o facto é que dependemos. Todos dependemos de previsibilidades, de hábitos e costumes comuns que nos liguem a determinadas pessoas, a determinados lugares, a determinados cheiros. Porque a verdade é que embora todos proclamemos a origininalidade, todos queremos o conforto da previsibilidade moderada.
E ela é um "nada" porque uma fraqueza é sempre um "tudo" não admitido.

As previsibilidades são os portos de abrigo das gentes. Portos de abrigo porque no fundo somos todos demasiado fracos para atingirmos uma independência e uma autonomia completas que nos permitam não depender absolutamente de alguém ou de alguma coisa. As previsibilidades são portanto o "tudo" que não queremos enfrentar, com que nos preocupamos muito. Porque a fraqueza é mesmo essa: anunciarmos ao mundo que somos originais e que gostamos de mudança e que, sobretudo, abominamos previdências, quando a verdade é que se não ouvirmos uns "esse feitiozinho...", sentimo-nos bastante vazios.

O Francisco chama-lhes comunicação fática quando as previsibilidades se baseiam em simples frases do mais previsível que pode esxistir. Mas o vencer a fraqueza passa por isto, por aceitar as comunicações fáticas diariamente como se de coisas novas se tratassem.

Deixar que se torne previsível o gostar-se de previsibilidades. Porque gostamos sempre. Porque é uma descoberta importante esta nossa descoberta.

A cargo do Miguel ficam as imagens que se seguem porque já é previsível a genialidade das suas fotografias. J.A.V.

Com os escuteiros fora e entre estudos obrigatórios que tento não enfrentar e uma ida ao cinema algo controversa, surgiu-me uma dúvida, e que melhor resolução do que a de expô-la aqui? A questão é simples.
Atingiu-me que esta necessidade de previsibilidades pode eventualmente ser uma fraqueza inerente à condição humana, acima de tudo porque precisamos de alguém ou de alguma coisa que nos dê segurança no sentido em que se torna a nossa testemunha efectiva para e com quem vivemos. Se calhar todo aquele problema do sentido da vida se explique também a partir daqui. Porque se o lado bom da fúria é o bom em que nos transformamos depois de conseguirmos libertar-nos da raiva permanente que está sempre à mão em tudo e em todos, então as previsibilidades garentem-nos testemunhas eternas para as quais canalizamos toda a nossa existência. Mas não... Assim, seríamos todos inequivocamente dependentes do previsível, e isso também não corresponde à realidade..(é até um bocado desesperante). Portanto, afinal qual é a necessidade básica a que tentamos dar resposta com toda esta inevitável correspondência com previsibilidades? Fica por aqui...para quem quiser procurar um porto de abrigo e perder (ou ganhar) uns minutos.

(Esta é a minha previsibilidade, voltar quando as coisas já foram discutidas e complicar tudo. HEI! Esta parte não está aberta a discussão!=) J.A.V.
 
Comments:
aposto que na sua triste e frustrada insignificância, o miguel nunca pensou ser capaz de te ajudar nessa descoberta. ganhou a noite. ganhou esta noite.
 
Meu Deus, como vais adorar as aulas de Teoria da Comunicação para o ano...! O Jakobson pensou nessas coisas também: precisamos de manter abertos os canais de comunicação, mesmo que não transmitamos informações novas, só para sabermos que está alguém "do outro lado" e para que ele saiba que nós também cá estamos, e usamos essas previsibilidades (é a bela da função fática da linguagem!). Mas não, não é uma cadeira interssante...!
 
Enviar um comentário



<< Home
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
maio 2005 / junho 2005 / julho 2005 / agosto 2005 / setembro 2005 / outubro 2005 / novembro 2005 / dezembro 2005 / janeiro 2006 / fevereiro 2006 / março 2006 / maio 2006 /


Powered by Blogger