Grandes dias, pequenas existências
terça-feira, agosto 23, 2005
  Ossos do Ofício
o senhor viu alguma vez um turista a cuspir para o chão?, não viu, é claro que não viu, e se viu não era turista, é um dos nossos que vai lá para fora e não agarra os bons costumes, e é pena, porque a Europa não é toda má, graças a Deus, é como tudo, tem coisas boas e tem coisas más, é pena os nossos não agarrarem as coisas boas que a Europa tem porque se assim fosse isto ainda podia dar o salto mas não vejo, não estou a ver, é tudo fossanguice mas é para depois andarem aí ao laréu cheios de carros à moda dos ministros, que a gente vê-os, não é?, o senhor não os vê por aí armados ao ministro?, eu vejo-os passar, eu vejo, mas eu já tenho a guia da marcha para o outro mundo, agora os mais novos, a pequenada, já viu o exemplo que essa gente está a dar aos filhos?, só dinheiro, só dinheiro, então e o resto?, ainda no outro dia vieram aqui para me dar uma televisão e eu até fiquei um bocado estúpido, fiquei banzado com aquilo, virem assim dar-me uma televisão, onde é que eu a punha?, e só depois é que descobri que queriam era que eu fosse atrás da televisão até ao asilo, punham a televisão só para mim e eu ficava lá a ver os filmes e os telejornais onde a gente vê que é só miséria, uns poucos com milhões e milhões com nada, é assim, infelizmente, e sabe o que lhe digo, Deus anda distraído como o caraças, com a minha idade já perdi um bocado a esperança, eu pelos vistos é ao contrário de muita gente, fui perdendo a fé em muita coisa, então veja lá, se Deus fosse uma pessoa a séria tinha feito a gente a chegar ao fim da vida com doença?, e é que já não falo da miséria, diga lá, responda, acha normal um deus fazer isto à humanidade, pô-la para aqui a sofrer?, não é normal, o Deus de que falam não é um deus normal, não pode ser, olhe eu já não acredito em nada, e sabe o que lhe digo?, sinto-me bem assim, é como se respirasse do alto de uma montanha a ver o mar, disso tenho saudades, do mar, caí aqui e pronto, mas às vezes, nos dias em que me sinto melhor, pego em mim e subo ali ao miradouro, é uma festa, só lhe digo, uma garrafita, se a tenho, o pãozito com o que houver e olho para Lisboa que é uma beleza, só não vejo é o mar, mas não faz mal, andei muitos anos em cima dele, chegaram-me, lembro-me bem dele, que raio, um homem também se cansa, mas que tenho saudades, tenho... olhe viu?, uma pinha!, não viu?, um tudo nada ao lado e lá comia aquele com ela, é assim... enquanto vai o Verão, a coisa vai mais ou menos, o pior é o Inverno, mas que se há-de fazer?, a vida é assim mesmo... olhe, se dependesse de mim morria no Verão...
in Sentimental, de Abel Neves
 
Comments:
certamente no verão
 
Enviar um comentário



<< Home
Complexo e intangível,nervoso e irrequieto, intrincado e obnubilante, balbúrdico e heteróclito, marafado e perscrutante, mírifico e adstringente, contráctil e obstipante, cataclísmico e necrófilo, hemorrágico e micótico,extra-fofinho ou nada fofinho, observador e acutilante.. ou nem tanto... Truísmos (extra)ordinários (des)mistificados aqui partilhados.

Escreve-me:
ursula.iguaran@hotmail.com


(os ditos tempos já decorridos):
maio 2005 / junho 2005 / julho 2005 / agosto 2005 / setembro 2005 / outubro 2005 / novembro 2005 / dezembro 2005 / janeiro 2006 / fevereiro 2006 / março 2006 / maio 2006 /


Powered by Blogger